sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Criatividade em "Construção", de Chico Buarque




Construção, de Chico Buarque

“Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse a último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado”




A criatividade de Chico em Construção está em “não dizer”, naquilo que Marcelino Freire chama de “quarto escuro”. Chico não diz que os brasileiros eram proibidos de falar, que viviam um falso tempo de desenvolvimento, nem que os líderes desapareciam pouco a pouco, nem que os grandes “cérebros” eram obrigados a se afastar do país.

Cada vez que ouço Construção descubro um significado novo nos versos e desde a primeira vez que a ouvi me vem à mente a imagem de um tabuleiro com as palavras proparoxítonas todas misturadas, as quais ele pega e vai (des)construindo frases com significados inusitados. A (des)construção do poema está na troca das  últimas palavras dos versos. Este jogo de palavras me atrai por ser (pelo menos para mim) um dos mais inteligentes que já li.

Ele já inicia a letra terminando os dois primeiros versos com a repetição da palavra última, como se abrisse a cortina de um palco onde será encenada uma tragédia cujo fim lógico é a morte, uma espécie de premonição, de aviso.

Um texto de cunho social muito forte, cujo protagonista é um pedreiro, o profissional que está no mais baixo patamar da construção, um sem rosto (Quem o percebe? Quem lhe dirige a palavra? Quem sabe de sua vida?). Um anônimo que constrói prédios nos quais jamais poderá morar, construindo ao mesmo tempo uma vida que passa ao largo.
Toda a letra nos remete a um ser cuja vida é insípida, que sofre, mas que sonha com uma vida diferente: a repetição da expressão como se revela-nos isso.

Embora seja um autômato (máquina) e como tal trabalha, ama e come, ele dança e gargalha (do quê? da vida? de si? de quem não sabe construir? de quem não sabe sonhar?), bebe como um náufrago (afogando-se na miséria? no tédio? na monotonia da repetição?) ele voa como se fosse um pássaro (livre para fazer o quiser, para dizer o que pensa, a mente não pode ser subjugada) e vive como se fosse um príncipe (dono de si, das suas ações, respeitado e admirado).

A letra tem três estrofes: as duas primeiras têm 17 versos e a última, sete, como corte repentino (como a morte do pedreiro), um resumo, um, fim inesperado, mas nesta estrofe reforça as ideias de ações mecânicas, como amar, beijar e sonhar, quando fala em levantar “paredes flácidas”, que poderiam ser derrubadas ou, quem sabe, cair, um paradoxo, porque os brasileiros viviam numa ditadura que enclausurava, que oprimia, que torturava, que proibia a livre expressão do pensamento, e derrubadas as paredes, voltariam a ser livres como os pássaros, uma esperança que não morria, e viver como príncipes( quem eram? os donos do poder? os que mandavam construir prédios luxuosos num país de pobres? os que tiravam dos pobres?) .

E ele morre na contramão atrapalhando o tráfego, e naturalmente o público, num sábado? Uma morte trágica: como ousa um joão-ninguém, um bêbado (atravessa a rua com passo tímido, “como se” estivesse bêbado), que passa a vida completamente despercebido (como tantos brasileiros), morrer chamando a atenção, atrapalhando o quotidiano de tantos? E por que atrapalha? Porque não tem um carro, porque nada se sabe dele, porque não tem rosto, porque há pressa, porque é tímido, porque não existe consideração com o ser humano...

Muito se tem analisado Construção, de Chico Buarque, desde que o disco veio a público, em 1971, quando se vivia a pior fase do Regime Militar. Na época, o autor voltava de seu exílio, e a censura, em geral vetava (ou liberava com cortes) suas obras. Logo que este disco saiu, lembro que uma pergunta que se fazia era como uma letra de cunho social como esta, um forte grito de socorro de um povo subjugado (pedreiro), sofrido, cujos olhos “estão embotados de cimento e lágrima”(impedidos de ver com clareza o que se passava verdadeiramente) saiu sem cortes. Bem mais tarde, li (não me lembro onde) que a letra foi liberada na íntegra, porque a gravadora enviara com a letra para os censores uma carta solicitando que a letra fosse vetada. Para contrariar, eles a liberaram. Não sei se é verdade isso. Mas sei que foi um dos discos mais escutados pela juventude da época.

Mardilê Friedrich Fabre

Imagens: Google

Um comentário:

Jorge Sader Filho disse...

Quem não lembra de "Construção"?
Chico botou o povo para cantar esta música, como tantas outras.
Eu entendo que Construção é atual até hoje.